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Writer's pictureKatherina Cordás

Banquetes barrocos excêntricos

Updated: May 22, 2019

tempo de leitura: 4 minutos.

Talvez pelo fervor criativo do dia a dia renascentista, talvez pela intensa dramaticidade barroca alguns anos depois... o fato é, a imaginação rolava solta nos banquetes dos séculos XVI e XVII. Algo entre festa e teatro, estes mega jantares eram adornados com cenografias lúdicas, construções gastronômicas inventivas e produções minuciosas que levavam dias para serem preparadas. O rendez-vous favorito de muitos artistas, os banquetes misturavam comida, arte, música, arquitetura e teatro em uma só experiência que visava cativar todos os sentidos da forma mais abrangente possível.

Royal feast. Alonso Sánchez Coello, 1579.
Royal feast. Alonso Sánchez Coello, 1579.

A “Companhia do Caldeirão”, grupo fundado em Florença no início do século XVI por diversos artistas, organizava jantares em que cada membro deveria levar um prato bastante inventivo (por via de regra), que circulava ao redor da mesa passando de boca em boca, para que todos provassem de tudo. Os pratos tinham que ser criativos o bastante para que não houvesse repetições – gafe gravíssima acompanhada de punição aos tais cozinheiros monótonos.


Anfitrião da vez, o pintor Francesco Rustici (1592-1625) criou todo um cenário lúdico para um dos jantares da companhia, construindo um caldeirão gigantesco (usando uma tina) e montando a mesa de jantar dentro deste caldeirão, onde os convidados estariam, supostamente, sendo cozidos. Os pratos foram posicionados ao redor do caldeirão sobre os troncos (!) de uma tecnológica árvore que se erguia e girava, levando cada prato de um comensal a outro, diversas vezes ao longo do jantar, até completar todo o círculo. #produção

Sociedade festiva, Dirck Hals (1591-1656).
Sociedade festiva, Dirck Hals (1591-1656).

O prato de Rustici era uma torta recheada em forma de caldeira com dois galos capões no topo da massa, literalmente fantasiados de humanos, usando adornos comestíveis. Sua idéia era fazer uma representação da lenda mitológica de Ulisses rejuvenescendo o pai em um banho milagroso. Realmente uma criatividade fervorosa – dificílimo dois pratos iguais.


Já o pintor florentino Andrea del Sarto (1486-1530) apresentou um prato mais arquitetônico, em forma de templo, com colunas feitas de linguiça com capitel de parmesão, piso de mosaico colorido feito com uma bela variedade de gelatinas, beiradas de açúcar, uma tribuna reluzente toda trabalhada no marzipã. Segundo Giogio Vasari em “As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos” escrito em 1550, o púlpito fechava com chave de ouro o prato (ou a escultura): "de vitela; com um livro de lasanha, cujas letras e notas a serem cantadas eram feitas de grãos de pimenta; e os que cantavam no púlpito eram sabiás de bico aberto e eretos, com certas camisolas à guisa de cotas feitas de tripa fina de porco; e atrás deles, como baixos, estavam dois pombos gordos, com seis aves que faziam o soprano.”

Władysław Bakałowicz. Banquete Renascentista, 1883
Władysław Bakałowicz. Banquete Renascentista, 1883

Da “Companhia do Caldeirão” nasceu a “Companhia da Colher” com número maior de membros. Esta organizava os excêntricos banquetes ainda mais elaborados, com grandes cenários, figurinos, engenhocas gastronômicas e tendências megalomaníacas.


Os companheiros da colher tinham uma particular preferência por banquetes à fantasia, existindo algumas menções a eventos em que todos se vestiam segundo um tema. Um jantar oferecido pela dupla de pintores Bugiardini (1475 – 1577) e Rustici (1552 –1641) instruía que todos os convidados viessem vestidos de pedreiros ou ajudantes braçais. Ao chegarem, se depararam com um projeto de edifício e, ao lado, os materiais necessários para sua construção. Massas de lasanha para as paredes, ricota com açúcar era o cal, queijo ralado com pimenta substituía a areia e confeitos faziam as vezes do cascalho. Pães eram tijolos e carne de vitela enrolada em sua tripa faziam as vezes de colunas. Azulejos, frisos, beirais, detalhes dos mais diversos chegavam aos montes, todos feitos de comida para esta mega construção gastronômica.

Livro "The Accomplisht Cook" de 1660 do banqueteiro Robert May
Livro "The Accomplisht Cook" de 1660 do cozinheiro Robert May

Alguns anos depois, no começo do século XVII, o cozinheiro barroco Robert May (1588-c.1664) ficou famoso com um de seus jantares, em que serviu uma torta em formato de navio de guerra, tão grande que para entrar no salão precisou de uma carroça enorme para o transporte. A embarcação, feita de massa de torta, mirava seus canhões para um castelo de papelão recheado dos mais diversos doces. No centro do castelo um cervo comestível gigantesco recheado de vinho tinto que, a certa altura, levou um tiro de uma dama da corte, jorrando “sangue” tinto por todo salão. Instaurou-se a batalha comestível: os canhões do navio acertavam o castelo que derramava guloseimas pelo chão. As damas da corte, para abafar o cheiro da real pólvora usada nos tiros, jogavam cascas de ovos recheadas de perfumes uma nas outras, como parte da encenação de guerra. O ataque finalmente chegou ao fim quando um pajem destampou uma torta liberando a entrada de rãs e pássaros vivos que pularam pelo salão fazendo as mulheres saírem correndo para cima das mesas e cadeiras num grande momento de, aparentemente, muita diversão.

"Descrição do Pais da Cocanha onde quem menos trabalha mais ganha". Gravura final século XVI.
"Descrição do Pais da Cocanha onde quem menos trabalha mais ganha". Gravura final século XVI.

Esta teatralidade a flor da pele, rebuliço permitido e fartura alimentícia remetia aos comensais histórias do aclamado País da Cocanha, um mito medieval que se refere a um lugar luxuoso onde ninguém trabalha e todos tem tudo de forma fácil e confortável. A comida era abundante, assim como o vinho e o sexo. Os rios eram de leite e as colinas de queijo, que também chovia aos montes do céu (amém!). Um poema francês do século XIII chamado "A Terra da Cocanha", descreve um lugar onde "as casas eram feitas de cevada, as ruas pavimentadas com doces e as lojas forneciam mercadorias de graça”. Uma terra de contrários, onde as regras sociais eram desafiadas, os tabus sexuais libertados e a comida e bebida abundantes. Cocanha era um país onde todos os desejos de uma sociedade camponesa medieval, miserável e faminta, se realizavam e, em outros tempos, uma inspiração para criativas, elaboradas e excêntricas comilanças barrocas.

O País da Cocanha. Pieter Bruegel, 1567.
O País da Cocanha. Pieter Bruegel, 1567.

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