Tempo de leitura: 5 minutos
"No Brasil, jamais faltaram adeptos ilustres da canja. Entretanto, ninguém lhe devotou tanto apreço quanto D. Pedro II. Ele a saboreou milhares de vezes nos 66 anos de vida." R. Magalhães Júnior. Artur Azevedo e Sua Época, 1953.
Outro dia fez 8ºC em São Paulo, um frio tão penetrante e inusual que passei todo este gélido fim de semana debaixo do cobertor, abraçando meu cachorro e pedindo um monte de delivery. Depois de algumas (boas) temporadas de uma série cafona demais para ser mencionada, perdi totalmente a hora das entregas de comida e me rendi a uma canja que tinha na geladeira - dessas contribuições que mãe manda pra gente às vezes (vulgo, alguns restos deliciosos da casa dela e que, desta vez, alguém provavelmente estava gripado por lá).
Na hora em que vi a canja, minha primeira reação foi de repulsa, algo tipo, eca, comida de doente, insossa, sem graça - não era o que eu queria para uma madrugada de diversão me acabando no Netflix. Mas foram poucos minutos até o cheiro do frango cozido, da cebola, do louro e do arroz transformarem meu apetite da água pro vinho: Que delícia canja de galinha de mãe! - e vale ressaltar que a canja nem foi feita pela minha mãe, digamos que ela orquestrou a feitura da sopa e, mesmo assim, tomar esta canja foi um abraço, foi ficar curado, sem mesmo estar doente.
Da gripe à dor de barriga, no Brasil a comida indicada para enfermidades é canja de galinha. Mas este conceito é milenar: a canja é considerada um dos remédios mais antigos da história do homem.
A água de cozer arroz era usada desde a Roma Antiga como um potente remédio contra a malária. Nas Odes de Horácio, de 23 a.C. e na História Natural de Plínio, publicada entre 77 d.C. e 79 d.C., este cozido era conhecido por suas propriedades terapêuticas e medicinais. Até meados do século XVII o primo da canja era um caldo grosso de arroz sem sal, muito usado para curar doenças. Mas a receita similar à que conhecemos hoje nasceu na Índia, e era chamada de “pez”ou “peya”, “bom para beber” em sânscrito. Mais tarde passou a ser conhecida por“cañji”, ou “arroz com água”, sendo muito consumida na região de Goa - colônia portuguesa de 1510 a 1961, por onde chegou no Brasil.
A primeira menção escrita sobre a canja está no livro “Colóquios dos Simples e Drogas da Índia”, do naturalista e médico judeu português, Garcia da Orta (1501-1568), lançado em Goa em Abril de 1563: "Nestes dias damos a comer ao enfermo leite azedo misturado com arroz, e franguos delidos em agoa deste arroz (a que elles chamão canje)" [sic]
Os portugueses incorporaram a galinha na receita, e assim, quando chegou no Brasil, a canja ganhou versões com aves nativas da Mata Atlântica, como a jacutinga, o macuco e o jacu, tornando-se uma queridinha da família real e, rapidamente, tomando conta dos cardápios das festas e jantares da elite brasileira.
"A beleza do bicho não impediu que os portugueses, ao chegarem ao Brasil, descobrissem imediatamente as qualidades gastronômicas da ave – “maior que nenhuma galinha de Portugal” –, que os índios gostavam de preparar assada ou moqueada. Logo, o peito carnudo do macuco começou a ser muito apreciado também além-mar. Durante o Império, a receita mais difundida foi a canja." Cíntia Bertolino, revista Piauí, 2015.
Francisca de Bragança, filha de D. Pedro I e Maria Leopoldina, ao se casar em Paris com Francisco Fernando Filipe de Orléans (1818-1900), pediu uma canja de papagaio com a maior naturalidade durante a cerimônia, deixando a corte francesa completamente chocada. Mas quem gostava mesmo de canja era seu irmão Pedro II - seu prato predileto. O imperador gostava tanto de canja que a comia diversas vezes ao dia, inclusive nos eventos sociais e no teatro, em que devorava canja de macuco, sua preferida, entre o segundo e o terceiro ato, intervalo que durava, claro, o tempo do imperador raspar o prato.
D. Pedro II, além de uma dieta tediosa, tinha a fama de comer muito rápido e apenas beber água com açúcar. Pois é, nem de vinho ele gostava. Mas a canja caiu no gosto do povo, e passou a ser chamada nos cardápios da cidade de "Sopa do Imperador" ou "Canja à la brésilienne" – na época tudo que tinha nome francês era chique.
Mary del Priore conta em Condessa de Barral – a paixão do Imperador, de 2006, que: “No menu, sempre uma canja. A comida era ruim, não se tomavam vinhos e o imperador engolia a refeição em segundos. Não havia a ‘arte da conversação’ tão prezada no exterior. Não só os serviços – ou seja, a sucessão de pratos – era praticamente ignorada, mas os empregados estavam sempre mal vestidos. Nem gourmet, nem sommelier, o imperador só gostava de doces: mães-bentas, suspiros e goiabada. Quanto à atividade física, considerava-a quase desprezível. Não gostava de caçar nem de matar animais. Menos ainda de caminhadas que o levassem a “ruminações” ou de jogos de bola. Para uma vida completa bastava, segundo ele, ‘alimentar os sentimentos do coração e os pensamentos do espírito”.
A canja ganhou diversos significados ao longo do tempo. Além da milagrosa “canja da vovó”, novos usos foram surgindo. A expressão“dar uma canja”, por exemplo, surgiu no final da década de 1960, no Clube dos Amigos do Jazz, o CAMJA, na esquina da rua Estados Unidos com Antilhas em São Paulo. O bar era repleto de instrumentos, e os músicos que passavam por lá sempre davam uma “canjinha”.
"Ser canja", é ser muito fácil. Canja é um clássico grito de torcida, “É canja, é canja, é canja de galinha … arruma outro time pra jogar na nossa linha”, música que surgiu nos anos 1980 nos jogos colegiais, ganhando uma versão, mais tarde, na voz da rainha dos baixinhos.
E como já dizia Jorge Ben: "Olha aí meu bem, prudência e dinheiro no bolso, canja de galinha não faz mal a ninguém"
Algumas versões de “canja” pelo mundo:
Congee asiático
Congee é uma sopa bem densa, quase um mingau, feito com arroz cozido por bastante tempo na água, servido como café da manhã em muitos lugares na Ásia. Além de sozinha, pode-se adicionar carne, frango, legumes e temperos em seu preparo. (Foto: China Sichuan Food)
Sopa Avgolemono da Grécia
Uma sopa que leva o clássico molho grego avgolemono, feito de gema de ovo e limão, misturado em um caldo de frango e arroz ou orzo. (Foto: Marcus Nilsson / Epicurious)
Sopa de pollo a la mexicana
Conhecida como o remédio para todos os maus, a canja mexicana é feita com frango, arroz branco, aipo, coentro, salsa, hortelã, abacate, limão, pimenta, alho, cebola e por aí vai... (Foto: Revista Mía)
Babaw do Cambodia
Sopa khmer feita com frango, barriga de porco, arroz, gengibre, molho de peixe, broto de feijão, açúcar, limão, pimenta. (Foto: Holistic Budo)
Terbiyeli Pirinçli Tavuk Çorbası (Sopa de arroz temperado), em turco
Conhecida na Turquia como a sopa para ficar forte, é feita de caldo de frango com arroz, peito de frango, gema de ovo e limão. (Foto: Yemek.com)
Kath, suas cronicas reunidas valem um livro, já pensou nisso?